quinta-feira, 16 de junho de 2011

Apenas mais um número

Por Érico Veríssimo - Acadêmico de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e metido a blogueiro de vez em quando

Texto publicado originalmente no Blog: http://blogdoericoverissimo.wordpress.com

Link da postagem original: http://blogdoericoverissimo.wordpress.com/2011/06/13/apenas-mais-um-numero/

Os desavisados que chegam à Boa Vista e se deparam com a cena de motoristas parando para que transeuntes atravessem a faixa de pedestres têm a impressão de que vivemos em uma cidade ordeira, organizada e com tráfego exemplar. Ledo engano. Ao observar, por alguns minutos, o vaivém de carros e motos, o incauto visitante logo constata a desordem e o desrespeito às regras básicas de trânsito. Basta, também, ficar a par das estatísticas de acidentes que ocorrem na capital roraimense e os dados irão surpreender.

Motoristas, pedestres e ciclistas estão empatados quando o assunto é infração às leis. Carros em alta velocidade, pessoas “desfilando” nas faixas e bicicletas ocupando o espaço de veículos são fatos corriqueiros na vida do boa-vistense. Alie-se à imprudência de cada um a falta de “engenharia de tráfego” eficiente e as mal planejadas ruas e avenidas, na maioria das vezes mal sinalizadas, que acabam sendo um convite para que motoristas imprudentes extravasem o seu lado animal e se sintam superpoderosos ao dirigir veículos possantes, tunados, a altíssimas velocidades, com sons tão potentes que se assemelham aos de trios elétricos. Normalmente conduzidos por homens, a sensação de poder aumenta se a intenção é impressionar o sexo oposto.

Basta dar uma rápida volta pelas noites da cidade e logo veremos a quantidade de idiotas usando o carro como “instrumento de sedução e ostentação de poder”. Para alguns, só é “macho” quem quebra regras, desrespeita vidas e desafia a lei. E a coroação ocorre quando tudo é feito com muito álcool na cabeça. A dica “se beber, não dirija” quase nunca é levada a sério.

Junte-se a isso uma fiscalização precária e as dubiedades de uma lei quase sempre benéfica aos “infratores”. Estipula-se uma fiança, o criminoso é solto e vidas inocentes passam a valer míseros reais. As autoridades sempre ressaltam que educação e campanhas específicas são eficazes no combate e redução à violência no trânsito, mas os controles inibidores de excessos acabam deixando a desejar, seja por déficit no quadro de agentes, seja pelos parcos recursos disponibilizados.

O argumento de que a cidade não está preparada para comportar algo em torno de 117 mil veículos já é algo muito batido, o que nos remete, mais uma vez, à questão da falta de planejamento e da má aplicação de recursos públicos (percebemos que investir em compra de roupas de palhaços, fantoches, jogos pedagógicos e perucas, dentre outros apetrechos para usar em campanhas educativas, não tem dado muito certo).

Segundo informações da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), “o trânsito é a única política pública que não está representada no primeiro escalão do governo”. O que significa que, ainda de acordo com a Abramet, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) “não tem recursos nem autonomia administrativa para gerir o trânsito no Brasil”. Com órgãos nas três esferas (federal, estaduais e municipais) fica complicado atribuir responsabilidades e garantir a qualidade dos serviços, ainda mais quando a integração desses setores é precária.

A falta de punição a quem comete crimes no trânsito, amparada por uma lei leniente, agrava a situação. Constantemente vemos pessoas sendo “assassinadas” por motoristas embriagados que, quando flagrados, são detidos por algumas horas e, após pagamento de fiança, são liberados e respondem ao processo em liberdade, quase sempre enquadrados na categoria de crime culposo, ou seja, quando não há intenção de matar.

Pergunto-me, do alto de minha inocência (talvez, ignorância): se o motorista sabe que há risco de provocar acidentes ao dirigir embriagado e até causar mortes, a consciência desse risco já não seria agravante para que se aplicassem “punições” mais rígidas? Por que quase sempre tudo termina em cestas básicas e prestação de trabalhos voluntários?

Não se pode suavizar, passar a mão na cabeça. Usar da condição social para se colocar acima da lei e se livrar da penalidade se torna evidente em muitos casos. São comuns o “sabe com quem você está falando?” e a velha “carteirada” para intimidar e colocar os “agentes da lei” contra a parede.

A legislação não é cumprida, pois não há fiscalização eficiente. Tira-se a habilitação do infrator, mas, na maioria das vezes, ele ainda dirige sem ser incomodado. Ao apostar na inoperância do sistema e na garantia da impunidade, o transgressor continua agindo livremente e pondo em risco a vida alheia.

Enquanto a matança ocorre e os hospitais continuam recebendo, diariamente, vítimas de acidente de trânsito, muitas delas incapacitadas, traumatizadas e desamparadas até mesmo pelo Estado, nos igualamos às estatísticas de países em guerra quando contamos os nossos mortos de forma violenta (no Brasil ocorrem, por ano, 18,3 mortes no trânsito por 100 mil habitantes).

No fim das contas, as vidas perdidas no trânsito brasileiro servem apenas para ilustrar a nossa incompetência, alimentar debates inócuos em busca de soluções que nunca chegam e encher os cofres públicos com rios de dinheiro que quase sempre não têm a devida destinação. As vítimas “ganham” espaço nos jornais do dia seguinte e são pranteadas por alguns instantes, mas logo caem no esquecimento e se tornam simples números para preencher as estatísticas dos mapas da violência.

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